segunda-feira, 27 de junho de 2016

2009 - Santiago de Compostela

Conselho da Cultura Galega Santiago de Compostela

16 e 17 de dezembro de 2009

Quero em primeiro lugar agradecer o Conselho da Cultura Galega e ao Arquivo da Emigration Galega pelo convite e cumprimenta-los pela organização desse encontro.          Temos acompanhado de perto o trabalho deste conselho e do arquivo. Eu acredito que esses encontros traduzem o reconhecimento de que, para estudarmos e entendermos as migrações é necessário romper fronteiras, como fizeram e fazem hoje os migrantes. Mais do que isso eu acredito que só entenderemos as migrações se a estudarmos na origem e no destino.


Teoria e prática da musealisação das migrações


Estamos vivendo em todo o mundo um processo de reconhecimento do movimento migratório, como fenômeno humano determinante de desenvolvimento social, econômico e cultural.
          Na Europa a história das migrações começa a fazer parte integrante das histórias nacionais. Apesar das políticas xenófobas de alguns governos, a sociedade, principalmente da área acadêmica e cultural, trabalha hoje no sentido de mudar o olhar da sociedade sobre os imigrantes.

         Em 2006 criamos a rede internacional de museus de migração junto a UNESCO, com 15 museus participantes. A França abriu em 2007 a Cité Nationale de l’histoire de l’Immigration. A Itália acabou de abrir, em 23 de outubro o Museu Nacional de Emigração da Itália.
Nos países da América, destino de grandes levas de imigrantes, a imigração é reconhecida como fenômeno de desenvolvimento e construção de identidade nacional.
Sinal disso é a criação, há mais de uma década, do Museu de imigração em Melbourne, Austrália, o Memorial em Ellis Island, New York e o Píer 21 Halifax no Canadá e o Memorial do Imigrante de São Paulo.
Está contida nesses museus, a grande contribuição dos imigrantes nas sociedades de destino. Estão contidos também os conflitos individuais e sociais que este fenômeno causa.

 Os arqueólogos já comprovaram que o homem aparece em primeiro lugar na África e dela saem para ocupar o mundo. A África é, portanto nossa origem primeira. O movimento humano é um processo histórico permanente no planeta e hoje se impõe como uma das principais conseqüências da globalização.

Se a abordagem acadêmica sobre imigração, enfatizava à melhor compreensão das raízes do movimento migratório de massa transoceânico, suas implicações sócio-econômicas e as trajetórias familiares, nos últimos anos os estudiosos acadêmicos se voltaram para as questões da construção das novas identidades e dos graus de integração nos paises receptores. Focado nesses fatores, os estudos se desenvolviam no marco dos respectivos paises.
Esse isolamento foi rompido na direção de um entendimento mais amplo sobre questões raciais, relações de trabalho, grau de urbanização e de industrialização em cada país, permitindo as comparações e a percepção de semelhanças e diferenças.
          Com a globalização e o surgimento da Comunidade Européia, a questão das migrações se coloca no centro das preocupações políticas mundiais contemporâneas.
          Hoje 220 milhões de pessoas estão fora de seus territórios de origem. São 3% da população mundial, o equivalente a população do Brasil e Argentina juntos. O Fundo monetário Internacional aponta 815 milhões de emigrantes potenciais e 200 milhões de migrantes internos, aqueles que deixam suas cidades sem deixar o país. A isso devem ser somados 11,5 milhões de refugiados.
 Estudos do BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento, a respeito das remessas financeiras de cidadãos residentes no exterior nos últimos anos, indicam que em 2004, mais de US$ 45 bilhões foram enviados por emigrantes para seus países da América Latina e Caribe. Em 2006 o Brasil recebeu US$ 3,2 bilhões em remessas. É o 15º país no mundo com maior volume de remessas enviadas por seus emigrantes.
          Dados divulgados no Seminário “Globalização Internacional e Desenvolvimento”, realizado recentemente em Santander - Espanha aponta que, um aumento de 3% no número de imigrantes nos paises desenvolvidos geraria US$ 300 bilhões adicionais para a economia, mais que os potenciais ganhos com a rodada Doha de liberalização comercial. Na ponta dos paises emissores de migrantes há o fato de que 25% da economia de Honduras provêm de remessas de hondurenhos que vivem no exterior. Na ponta dos receptores, “há 12 milhões de irregulares trabalhando nos EUA, o que equivale a 9% da população empregada; se todos fossem expulsos, o PIB despencaria”, calcula Guillermo de La Dehesa[1].
Historicamente a imagem dos imigrantes é a de um cidadão de segunda classe ou um sobrevivente para a economia dos paises tanto os de origem como os de destino. Essa imagem muitas vezes estereotipada conflita com os dados acima. Colocando de outra forma, as migrações favorecem as economias dos paises emissores e receptores, porém o imigrante individualmente e a sociedade em geral, não tem consciência clara sobre isso.

Como já salientou o UNHCR – The UN Refugee Agency, os meios de comunicações muitas vezes são responsáveis pela difusão de estereótipos negativos sobre migrantes e refugiados e contribuem para a difusão de sentimentos racistas e xenófobos junto à opinião pública[2].  Podemos incluir aqui a literatura e o cinema de ficção que trataram o assunto equivocadamente, desinformando a sociedade sobre o papel do migrante nos países de origem e nos de destino.

O desafio que se coloca para os museus de migração hoje é propiciar uma compreensão abrangente do fenômeno das migrações humanas. Como diz Gerard Noiriel, trata-se de “mudar o olhar da sociedade e do poder público sobre os imigrantes”. [3]
Os museus e centro de estudos de migrações podem e devem:
        Facilitar o diálogo e a transmissão cultural entre gerações;              
        Dar voz aos migrantes e as segundas gerações, valorizando a diversidade e a integração cultural;
        Mostrar a contribuição dos migrantes nas sociedades de destino;
        Como um “lugar de memória”, contar estórias individuais e comuns às pessoas em movimento, mostrando as razões que levam os migrantes, refugiados ou forçados a deixarem seus países de origem;
        Contribuir para a desconstrução de estereótipos.

Os museus devem ser espaços de encontro e diálogo entre as organizações de imigrantes e a sociedade. O objeto de estudo dos museus de migrações os insere no contexto político da sociedade organizada e, como instituições culturais, focarão o fenômeno das migrações necessariamente no âmbito da cultura.  Esta perspectiva permite um entendimento abrangente do fenômeno, bem como uma maior capacidade de ação junto aos segmentos organizados da sociedade.  Ainda citando Noiriel, “a cultura pode ser um meio de ação cívica”.
          Aos museus de migração impõe-se uma revisão dos discursos que historicamente representaram os imigrantes. Há que se confrontar discursos e estudos antropológicos, demográficos, psico-sociais, econômicos e políticos aos dos historiadores. Mais do que isso, neste museu o imigrante terá voz e se sentirá confortável para dar seu testemunho, falar de suas dificuldades, contar suas histórias enfim, se fará conhecer pela sociedade que, muitas vezes por desconhecimento, o discrimina.
As migrações contemporâneas ainda não estão contidas nos museus. A situação de “ilegalidade” desses indivíduos e a fragmentação das atribuições e controle de imigração em vários órgãos oficiais e não oficiais, aumentam esta dificuldade.
Não devemos, no entanto, perder o foco das atribuições dos museus. No assunto sobre o fenômeno das migrações, existem atribuições concernentes à área acadêmica, às organizações governamentais e não-governamentais, aos consulados e embaixadas e às comunidades de imigrantes. 
          Esses museus devem estar preparados para subsidiar políticas públicas uma vez que a História neles contida dará a perspectivas dos aspectos positivos e negativos dessas políticas.
          Os museus de migrações devem estar bem informados sobre as leis e convenções internacionais existentes no país, relativas a migrações e disponibilizá-las para a sociedade em geral e principalmente para os imigrantes, conscientizando-o de seus deveres e direitos. Para isso deverá estar em contato estreito e permanente com instituições e ONGs nacionais e internacionais de apoio aos imigrantes. Da mesma forma manterá interlocução privilegiada com órgãos governamentais como Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores e com as Polícias Federais. Como músicos e artistas pesquisam materiais históricos que os inspiram em suas novas criações artísticas, também políticos, parlamentares e advogados pesquisarão no museu subsídios para seus trabalhos jurídicos e legislativos.
           Para recuperar os movimentos, itinerários, dinâmicas de integração das comunidades, das relações passadas e presentes entre os países de origem e os países de acolhida, entre as primeiras gerações dos migrantes e os seus descendentes, os museus de migração romperão fronteiras nacionais trabalhando em cooperação com instituições da mesma natureza, internacionais e em outros países.
           

Estamos aqui em Santiago de Compostela, mais uma vez, como militante em favor da preservação e do reconhecimento do Patrimônio das migrações humanas.
          Os museus de migração pertencem à categoria dos museus de História e de Sociedade. São uma tentativa de reconhecimento do patrimônio da imigração como Patrimônio Nacional. De acordo com o ICOM – Comitê Internacional de Museus, “um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, divulga e expõe, para fins de estudo, educação e lazer, testemunhos materiais e imateriais dos povos e seu ambiente”.

Museóloga e tendo ocupado postos de direção em instituições museologicas no Brasil, no final de 2005 assumi a direção executiva do Memorial do Imigrante de São Paulo. Encontramos um museu debruçado nos estudos das migrações, no período das migrações de massa em São Paulo.
Nossa primeira ação foi o reconhecimento oficial de que, o Memorial, mais que um museu, é um importante Arquivo Histórico documental, que interessa, não só aos centros de estudo das migrações em São Paulo e no Brasil, mas também a outros paises.
          Não havia uma clara política de acervo e nem tratamento técnico museológico das coleções.
Nos primeiros 2 anos de gestão, para fazer frente aos novos desafios, estabelecendo uma nova visão e missão da instituição, promovemos um grande debate com a sociedade através das seguintes ações no sentido de:

1.             Aproximar o Memorial do Imigrante da área acadêmica, desenvolvendo projetos e trabalhos conjuntos;

Um museu de migrações tem, como um dos aspectos de sua missão, tornar-se centro permanente de estudo e pesquisa.
Nestes 2 anos promovemos e participamos ativamente de seminários, encontros e eventos nacionais e internacionais na área de Historia; de laboratórios de estudos de racismo, intolerância e xenofobia; de estudos rurais e urbanos;
          Trabalhamos também com profissionais de outras áreas do conhecimento, como psicólogos, antropólogos, geógrafos, etc, trazendo novas visões para o assunto das migrações.
          Iniciamos parceria com a Sociedade Junguiana de São Paulo, para trabalharmos a imigração no processo de construção da identidade paulista a partir dos pressupostos metodológicos e dos fundamentos teóricos da Psicologia.
          Essas iniciativas proporcionaram maior divulgação de nossos acervos e estabeleceu um grande diálogo entre o museu e a área acadêmica.

2. Disponibilizar o acervo por meio de novos instrumentos de pesquisa e de novo padrão expositivo;

Estabelecemos metas para digitalizar e informatizar a imensa massa documental existente, dando acesso a pesquisadores. Parte deste trabalho esta sendo viabilizado através de convênios e parcerias firmados com instituições da mesma natureza no Brasil e em outros paises, com a finalidade de criar bancos de dados de interesse comum.
          No ano de 2008 concluímos e abrimos ao publico, 2 novos bancos de dados: um contendo dados de todos os japoneses entrados em São Paulo, projeto que fez parte das ações comemorativas do Centenário da imigração japonesa no Brasil, e outro, denominado War2, sobre  imigração nos períodos  entre guerras, existentes na documentação do Memorial.  Ampliamos a biblioteca transformando-a em mídiateca especializada.

3. Inserir o Memorial do Imigrante no cenário dos centros internacionais de estudo de migrações, estabelecendo contatos e troca de informações com outras instituições museológicas do Brasil e do Exterior;
         
          Como já afirmei acima, fenômeno das migrações pressupõe um entendimento além das fronteiras “nacionais”. Mais do que isso, o estudo das migrações em determinado espaço geográfico e em uma determinada época, deve estar inserido no movimento migratório global, desde o inicio dos tempos até os tempos atuais. Essa relativização permite ao público uma leitura crítica e uma maior compreensão do fenômeno.  Entendemos que as migrações humanas devam ser estudadas na origem e no destino.
           Para recuperar os movimentos, itinerários, dinâmicas de integração das comunidades, das relações passadas e presentes entre os países de origem e os países de acolhida, entre as primeiras gerações dos migrantes e os seus descendentes, os museus de migração romperão fronteiras nacionais trabalhando em cooperação com instituições da mesma natureza em outros países.
          Especificamente entre nos, Galícia e Brasil, considero urgente e proveitoso trabalharmos em linhas de pesquisa de interesse comum.
          Em sintonia com as novas tendências, tanto na área de estudos de migrações, quanto na
 área de museus, lideramos a criação da Rede Brasileira de Centros de Estudo de Migrações. Esta
 rede está cadastrando esses centros para facilitar a identificação dos acervos de imigração no país,
 auxiliando no reconhecimento destas Instituições por parte de pesquisadores, estudantes e público
 em geral.
          Como já mencionei, participamos em Roma em 2006 da criação da Rede Internacional de Museus de Migração junto a UNESCO e IOM-International Organization for Migration - para facilitar a troca de informações e a cooperação internacional desenvolvendo projetos e atividades comuns. Recebemos exposições de outros paises e promovemos a Itinerância de exposições do Memorial para o exterior.
Essa troca de experiências tem sido muito produtiva. Um exemplo recente foi a parceria com a Cité Nationale de l’histoire de l’immigration da França por ocasião do ano da França no Brasil. Mostramos no Memorial, uma versão da exposição Réperes que é a exposição permanente da Cité. Foi muito interessante porque se estabeleceu uma oportunidade de comparar as linguagens distintas utilizadas nos 2 museus. A Cité na França, país de imigração como o Brasil, utiliza em suas exposições, obras de arte de artistas imigrantes ou que tenham a imigração como tema. Embora tenhamos organizado exposições de arte no Memorial, essa mostra vinda da França, reforça nosso propósito de estimular artistas no Brasil, a utilizarem a linguagem artística, como expressão dos valores culturais dos imigrantes.

4. Ampliar o objeto de estudo do Memorial do Imigrante para além do século XIX, época das migrações massivas, incorporando o fenômeno das migrações contemporâneas ao foco da instituição;

          Realizamos anualmente a festa do Imigrante ocasião em que imigrantes e descendentes de segunda e terceiras gerações, de várias nacionalidades, se encontram numa festa com comidas típicas, dança e musica.
          Redirecionamos o Setor de Memória Oral, no sentido de colher depoimentos de latino-americanos, coreanos e refugiados, que hoje emigram para o Brasil. Com os mesmos critérios estamos coletando fotos e objetos para o acervo.
          Essas novas relações provocaram a revisão da missão e da visão do museu, impondo a reformulação de suas praticas.

MISSÃO
Promover a busca das identidades individuais e coletivas, constituindo-se em espaço de expressão e reconhecimento da diversidade brasileira por meio do resgate, da preservação e da disseminação da história e da memória das migrações no Brasil.
VISÃO
Consolidar a posição de referência nacional e internacional como museu e principal centro de informação sobre movimentos migratórios no Brasil.
Este ano o acervo documental do Memorial do Imigrante foi classificado como Memória do Mundo pela UNESCO. Também este ano uma lei do Presidente Lula anistiou todos os imigrantes no Brasil. Serão legalizados todos que quiserem.
Em 2011 o prédio passará por obras de restauração e requalificação museológica e museográfica. O Memorial está instalado no prédio da antiga Hospedaria dos Imigrantes. Inaugurado em 1887, o prédio foi classificado como Patrimônio cultural em 1994.
Durante o ano de 2010 o museu estará fechado ao público. Trabalharemos internamente e a programação (exposições, workshops, festas e serviço educativo) será desenvolvida extra muros.



          Não há neutralidade na atividade museologica. Ações museologicas pressupõem escolhas e neste sentido os museus podem ser instrumentos de conscientização ou instrumentos de alienação. Aos museus compete colecionar, salvaguardar e divulgar as informações históricas contidas em seu acervo histórico-cultural. Fazê-las conhecidas pela sociedade é fundamental para reduzir as dificuldades das relações entre os povos.
 A história da humanidade é a história das migrações humanas. O fenômeno das migrações continua sendo uma história da sobrevivência no planeta e da dinâmica da construção das identidades. A criação política dos estados nacionais não poderá camuflar a condição da origem migrante de todos e de cada um de nós. O museu é um espaço político e nele o passado, como protagonista do futuro, atua como força transformadora. Trabalharemos juntos rompendo as fronteiras artificiais do isolamento.




[1] Presidente do Centro de Pesquisa de Política Econômica, com sede em Londres e autor de “Comprender la Immigración” lançado durante o Seminário.
[2] ACNUR- Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Políticas Públicas para as Migrações Internacionais – Migrantes e Refugiados, Brasília - Brasil, maio de 2006, p. 88
[3]  L’historien dans la Cite: comment concilier histoire et mémoire de L’immigration ?  Gerard Noiriel Museum Inernational nº 233,234

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